O BARCO PESQUEIRO


Toda essa imagem me da um aperto no coração. Curioso eu achar isso, pois qualquer um que olhasse para essa paisagem de fim de tarde, com um barco solitário admirando o sol alaranjado e um mar azul infinito cruzado pela linha do horizonte, acharia esse cenário no mínimo perfeito. Mas eu não. Tenho essa mania incomum de ver além do que se pode ver. 

Pergunto a minha adolescente filha: - o que você vê? 

E a resposta dela é acompanhada de uma expressão de estranheza, passava uma mensagem de que a resposta era tão óbvia que nem precisava ser dita. Mas ainda assim ela respondeu: - um barco arruinado. 

Tentei olhar como ela. De fato aquele era um barco velho, mas não era só um barco velho. Nem acho que arruinado seria uma palavra apropriada. Creio estar mais para um barco guerreiro. Ou um barco antigo. Mas arruinado? De jeito nenhum! 

As ondas balançavam a carcaça do que um dia já foi um verdadeiro e legitimo barco pesqueiro. Hoje, o projeto clássico se move vagarosamente. Nem parece que já foi o mais bem sucedido de sua frota. O vento corta aos poucos a madeira que forma aquele corpo quase inanimado. Triste ver o capitão tentando furar ondas de meio metro, mas que a cada bateria, anda um pouco para trás. 

Seu único, e idoso pescador, joga uma rede que já fora remendada e costurada o maior número de vezes que você possa imaginar. Mas que ainda persistia em peneirar o que era sólido e grande demais para passar entre os buracos estreitos, deixando passar a água salgada e a areia do fundo do mar. 

Expliquei para minha filha a história daquele barco, de seus dias gloriosos e fartos. Das abundantes caixas de peixes frescos que ele depositava diariamente no cais. Ela se perguntou como isso seria possível, se aquela coisa mal conseguia se mover. Expliquei então como os tempos eram antigamente e o que me fazia pensar que aquele não era um barco qualquer. 

Quando pequena, adorava ver os barcos chegando um a um, trazendo peixes, lulas e meus favoritos, os caranguejos ariscos. Um dia, depois de completadas 15 primaveras, resolvi me arriscar a pedir um presente ao capitão que via frequentemente chegando com o barco abundante. Pedi que ele me levasse por um dia para pescar. 

Aquele foi um dia primoroso. Não que eu tenha visto golfinhos, nem que eu tenha conseguido pescar um bagre -Pelo contrário, não peguei sequer uma sardinha- mas só de estar lá, no meio do mar, vendo a praia de longe e sentindo a brisa cobrir meu corpo... Só isso... Isso era tudo. 

Também foi o dia em que conheci meu primeiro amor. Ele era o mais eficiente aprendiz de pescador, e o capitão vivia o chamando para observar o maquinário, conferir as redes e redirecionar o timão. Era um menino esforçado, entre a aula e o curso de inglês, ele ainda tinha tempo para pescar, sua grande paixão. 

Quando já havíamos enchido todas as reservas com peixes e o capitão anunciou nossa volta à terra firme, é que aquele belo rapaz de 17 anos com pele bronzeada e braços fortes se permitiu sentar para descansar e admirar o belo pôr do sol. Fiquei feliz, pois ele, com tantos lugares para sentar, parou ao meu lado e perguntou o que eu achava daquilo tudo. 

Conversamos sobre a natureza, sobre os barcos e sobre as coisas boas da vida. O tempo passou depressa e quando percebemos, o capitão estava apitando para que jogassem a corda; era hora de atracar. Nos dividimos, ele morava para o norte e eu para o sul. Depois daquilo, muitas coisas aconteceram e eu não pude retornar ao cais durante um tempo; mas essa já seria uma outra história.  

Não sei se foram os olhos claros como o céu sem nuvens ou se foi a voz rouca. Só sei que mesmo nossa conversa durando menos de uma hora, foi o suficiente para me encantar com aquela pessoa. Infelizmente, foi a última vez que o vi. 

Então, quando olho para o barco do capitão, com as redes vazias, o convés com apenas um pescador e o casco rachado, não consigo ver um barco arruinado. Vejo um ser que já passou por muitas coisas e agora foi obrigado a descansar. E isso sim, coloca certa tristeza em meu coração. Uma tristeza que não é totalmente triste; diria melhor... Uma nostalgia que invade minha alma. Uma saudade que não posso explicar. Saudade dos dias majestosos com o barco a cruzando velozmente o mar. 

Por isso tudo e um pouco mais, expliquei a minha filha que ela não deveria olhar somente com os olhos. Porque as coisas, mesmo parecendo simples e triviais, trazem consigo toda uma história. Enfim, digo a ela que aquele antigo barco nunca foi, nem nunca será um barco arruinado. Ele já trouxe muitas alegrias, para muitas pessoas. E mesmo se estivesse atracado sozinho no cais, ainda assim, seria o barco mais incrível do mundo. 





CONVERSATION

0 comentários:

Postar um comentário